Dona
Custódia
Fernando Sabino
Ar de empregada ela não tinha: era uma velha
mirrada, muito bem arranjadinha, mangas compridas, cabelos em bandó num vago ar
de camafeu – e usava mesmo um, fechando-lhe o vestido ao pescoço. Mas via-se
que era humilde – atendera ao anúncio publicado no jornal porque satisfazia às
especificações, conforme ela mesma própria fez questão de dizer: sabia
cozinhar, arrumar a casa e servir com eficiência a senhor só.
O
senhor só fê-la entrar, meio ressabiado. Não era propriamente o que esperava,
mas tanto melhor: a velhinha podia muito bem dar conta do recado, por que não?
E além do mais, impunha dentro da casa certo ar de discrição e respeito,
propício ao meu trabalho de escritor. Chamava-se Custódia.
Dona
Custódia foi logo botando ordem na casa
: varreu a sala, limpou o quarto, arrumou a
cozinha, preparou o jantar. Deslizava como uma sombra para lá, para cá – em
pouco sobejavam as provas de sua eficiência doméstica. Ao fim de alguns dias
ele se acostumou à sua silenciosa iniciativa (fazia de vez em quando uns
quitutes) e se deu por satisfeito: chegou mesmo a pensar em aumentar-lhe o
ordenado, sob a feliz impressão de que se tratava de uma empregada de
categoria.
De
tanta categoria que no dia do aniversário do pai, em que almoçaria fora, ele
aproveitou para dispensar também o jantar, só para lhe proporcionar o dia
inteiro de folga. Dona Custódia ficou muito satisfeitinha, disse que assim
sendo iria também passar o dia com uns parentes lá no Rio Comprido.
Mas
às quatro horas da tarde ele precisou de dar um pulo no apartamento para
apanhar qualquer coisa que não vem à história. A história se restringe à
impressão estranha que teve, então, ao abrir a porta e entrar na sala: julgou
mesmo ter errado de andar e invadido casa alheia. Porque aconteceu que deu com
os móveis da sala dispostos de maneira diferente, tudo muito arranjadinho e
limpo, mas cheio de enfeites mimosos: paninho de renda no consolo, toalha
bordada na mesa, dois bibelôs sobre a cristaleira – e em lugar da gravura
impressionista na parede, que se via? Um velho de bigodes o espiava para além
do tempo, dentro da moldura oval. Nem pôde examinar direito tudo isso, porque,
espalhadas pela sala, muito formalizadas e de chapéu, oito ou dez senhoras tomavam
chá! Só então reconheceu entre elas dona Custódia, que antes proseava muito à
vontade, mas ao vê-lo se calou, estatelada. Estupefato, ele ficou parado sem
saber o que fazer e já ia dando o fora quando a empregada se recompôs do susto
e correu, pressurosa:
−
Entre, não faça cerimônia! – puxou-o pelo braço, voltando-se para as demais
velhinhas – Este é o moço que eu falava, a quem alugo um quarto.
Foi
apresentado a uma por uma: viúva do desembargador Fulano de Tal; senhora
Assim-Assim; senhora Assim-Assado; viúva de Beltrano, aquele escritor da
Academia! Depois de estender a mão a todas elas, sentou-se na ponta de uma
cadeira, sem saber o que dizer. Dona Custódia veio em sua salvação.
−
Aceita um chazinho?
−
Não, muito obrigado. eu...
−
Deixa de cerimônia. Olha aqui, experimenta uma brevidade, que o senhor gosta
tanto. Eu mesma fiz.
Que
ela mesma fizera ele sabia – não haveria também de pretender que ele é que
cozinhava. Que diabo ela fizera de seu quadro? E os livros, seus cachimbos, o
nu de Modigliani junto à porta substituído por uma aquarelinha...
− A
senhora vai me dar licença, dona Custódia.
Fui
ao quarto – tudo sobre a cama, nas cadeiras, na cômoda. Apanhou o tal objeto
que buscava e voltou à sala:
−
Muito prazer, muito prazer – despediu-se, balançando a cabeça e caminhando de
costas como um chinês. Ganhou a porta e saiu.
Quando regressou, tarde da noite, encontrou como por encanto o
apartamento restituído à arrumação original, que o fazia seu. O velho bigodudo
desaparecera, o paninho de renda, tudo
e os objetos familiares haviam retornado ao lugar.
− A
senhora...
Dona
Custódia o aguardava, ereta como uma estátua, plantada no meio da sala. Ao
vê-lo, abriu os braços, dramaticamente, falou apenas:
− Eu
sou a pobreza envergonhada!
Não
precisou dizer mais nada: ao olhá-la, ele reconhecia logo que era ela: a
própria Pobreza Envergonhada. E a tal certeza nem seria preciso acrescentar-se
as explicações, a aflição, as lágrimas com que a pobre se desculpava,
envergonhadíssima: perdera o marido, passava necessidade, não tinha outro
remédio – escondida das amigas se fizera empregada doméstica! E aquela tinha
sido a oportunidade de reaparecer para elas, justificar o sumiço... ele balançava
a cabeça, concordando: não se afligisse, estava tudo bem. Concordava mesmo que
de vez em quando, ele não estando em casa, evidentemente, voltasse a recebe-las
como na véspera, para um chazinho.
O
que passou a acontecer dali por diante, sem mais incidentes. E às vezes se
acaso regressava mais cedo, detinha-se na sala para bater um papo com as
velhinhas, a quem já ia se afeiçoando.
Não
tão velhinhas que um dia não surgisse uma viúva bem mais conservada, a quem
acabou também se afeiçoando, mas de maneira especial. Até que Dona Custódia
soube, descobriu tudo. Ficou horrorizada! Não admitia que uma amiga fizesse
aquilo com seu hóspede. E despediu-se, foi-se embora para nunca mais.
Q u e s t i o n á r i o
01. Que fato proporcionou a aparição de Dona Custódia ao narrador?
02. Aponte as qualificações que credenciavam a senhora, como solicitava o anúncio do jornal.
03. Em que a aparência da velhinha poderia beneficiar a casa do proprietário?
04. Por que o escritor cogitou aumentar o salário de Dona Custódia?
05. A atitude tomada pelo escritor no dia do aniversário do pai em relação à empregada.
06. Recebendo um dia de folga, o que pretendia fazer a empregada?
07. Retornando à casa às quatro horas, o que provocou estanhamento ao dono do imóvel?
08. Que motivo o levou a não reparar direito na arrumação da casa?
09. Como Dona Custódia reagiu diante do retorno inesperado do patrão?
10. De que forma a empregada desfez o constrangimento na hora do chá?
11. Para justificar o encontro promovido às amigas, Dona Custódia relatou duas ocorrências ruins em seu passado. Quais?
12. Atitude tomada por Dona Custódia para fugir das amigas.
13. Explique a frase "...aquela tinha sido a oportunidade de reaparecer para eles".
14. Diante da explicação da empregada, que decisão tomou o patrão?
15. O que aconteceu quando Dona Custódia descobriu que uma das amigas havia se afeiçoado ao patrão?
16. Não admitindo a afeição de sua amiga com seu hóspede, relate a decisão tomada por Dona Custódia.
17. Desenvolva, com suas palavras, um resumo desse texto.
18. Faça uma pequena pesquisa acerca do escritor Fernando Sabino.