domingo, 24 de maio de 2020

Dona Custódia



Dona Custódia                                                  
Fernando Sabino

     Ar de empregada ela não tinha: era uma velha mirrada, muito bem arranjadinha, mangas compridas, cabelos em bandó num vago ar de camafeu – e usava mesmo um, fechando-lhe o vestido ao pescoço. Mas via-se que era humilde – atendera ao anúncio publicado no jornal porque satisfazia às especificações, conforme ela mesma própria fez questão de dizer: sabia cozinhar, arrumar a casa e servir com eficiência a senhor só.
     O senhor só fê-la entrar, meio ressabiado. Não era propriamente o que esperava, mas tanto melhor: a velhinha podia muito bem dar conta do recado, por que não? E além do mais, impunha dentro da casa certo ar de discrição e respeito, propício ao meu trabalho de escritor. Chamava-se Custódia.
     Dona Custódia foi logo botando ordem na casa
: varreu a sala, limpou o quarto, arrumou a cozinha, preparou o jantar. Deslizava como uma sombra para lá, para cá – em pouco sobejavam as provas de sua eficiência doméstica. Ao fim de alguns dias ele se acostumou à sua silenciosa iniciativa (fazia de vez em quando uns quitutes) e se deu por satisfeito: chegou mesmo a pensar em aumentar-lhe o ordenado, sob a feliz impressão de que se tratava de uma empregada de categoria.
     De tanta categoria que no dia do aniversário do pai, em que almoçaria fora, ele aproveitou para dispensar também o jantar, só para lhe proporcionar o dia inteiro de folga. Dona Custódia ficou muito satisfeitinha, disse que assim sendo iria também passar o dia com uns parentes lá no Rio Comprido.
     Mas às quatro horas da tarde ele precisou de dar um pulo no apartamento para apanhar qualquer coisa que não vem à história. A história se restringe à impressão estranha que teve, então, ao abrir a porta e entrar na sala: julgou mesmo ter errado de andar e invadido casa alheia. Porque aconteceu que deu com os móveis da sala dispostos de maneira diferente, tudo muito arranjadinho e limpo, mas cheio de enfeites mimosos: paninho de renda no consolo, toalha bordada na mesa, dois bibelôs sobre a cristaleira – e em lugar da gravura impressionista na parede, que se via? Um velho de bigodes o espiava para além do tempo, dentro da moldura oval. Nem pôde examinar direito tudo isso, porque, espalhadas pela sala, muito formalizadas e de chapéu, oito ou dez senhoras tomavam chá! Só então reconheceu entre elas dona Custódia, que antes proseava muito à vontade, mas ao vê-lo se calou, estatelada. Estupefato, ele ficou parado sem saber o que fazer e já ia dando o fora quando a empregada se recompôs do susto e correu, pressurosa:
     − Entre, não faça cerimônia! – puxou-o pelo braço, voltando-se para as demais velhinhas – Este é o moço que eu falava, a quem alugo um quarto.
     Foi apresentado a uma por uma: viúva do desembargador Fulano de Tal; senhora Assim-Assim; senhora Assim-Assado; viúva de Beltrano, aquele escritor da Academia! Depois de estender a mão a todas elas, sentou-se na ponta de uma cadeira, sem saber o que dizer. Dona Custódia veio em sua salvação.
     − Aceita um chazinho?
     − Não, muito obrigado. eu...
     − Deixa de cerimônia. Olha aqui, experimenta uma brevidade, que o senhor gosta tanto. Eu mesma fiz.
     Que ela mesma fizera ele sabia – não haveria também de pretender que ele é que cozinhava. Que diabo ela fizera de seu quadro? E os livros, seus cachimbos, o nu de Modigliani junto à porta substituído por uma aquarelinha...
     − A senhora vai me dar licença, dona Custódia.
     Fui ao quarto – tudo sobre a cama, nas cadeiras, na cômoda. Apanhou o tal objeto que buscava e voltou à sala:
     − Muito prazer, muito prazer – despediu-se, balançando a cabeça e caminhando de costas como um chinês. Ganhou a porta e saiu.
     Quando regressou, tarde da noite, encontrou como por encanto o apartamento restituído à arrumação original, que o fazia seu. O velho bigodudo desaparecera, o paninho de renda, tudo   e os objetos familiares haviam retornado ao lugar.
     − A senhora...
     Dona Custódia o aguardava, ereta como uma estátua, plantada no meio da sala. Ao vê-lo, abriu os braços, dramaticamente, falou apenas:
     − Eu sou a pobreza envergonhada!
     Não precisou dizer mais nada: ao olhá-la, ele reconhecia logo que era ela: a própria Pobreza Envergonhada. E a tal certeza nem seria preciso acrescentar-se as explicações, a aflição, as lágrimas com que a pobre se desculpava, envergonhadíssima: perdera o marido, passava necessidade, não tinha outro remédio – escondida das amigas se fizera empregada doméstica! E aquela tinha sido a oportunidade de reaparecer para elas, justificar o sumiço... ele balançava a cabeça, concordando: não se afligisse, estava tudo bem. Concordava mesmo que de vez em quando, ele não estando em casa, evidentemente, voltasse a recebe-las como na véspera, para um chazinho.
     O que passou a acontecer dali por diante, sem mais incidentes. E às vezes se acaso regressava mais cedo, detinha-se na sala para bater um papo com as velhinhas, a quem já ia se afeiçoando.
     Não tão velhinhas que um dia não surgisse uma viúva bem mais conservada, a quem acabou também se afeiçoando, mas de maneira especial. Até que Dona Custódia soube, descobriu tudo. Ficou horrorizada! Não admitia que uma amiga fizesse aquilo com seu hóspede. E despediu-se, foi-se embora para nunca mais.




Q u e s t i o n á r i o

01. Que fato proporcionou a aparição de Dona Custódia ao narrador? 

02. Aponte as qualificações que credenciavam a senhora, como solicitava o anúncio do jornal.

03. Em que a aparência da velhinha poderia beneficiar a casa do proprietário?

04. Por que o escritor cogitou aumentar o salário de Dona Custódia?

05. A atitude tomada pelo escritor no dia do aniversário do pai em relação à empregada.

06. Recebendo um dia de folga, o que pretendia fazer a empregada?

07. Retornando à casa às quatro horas, o que provocou estanhamento ao dono do imóvel?

08. Que motivo o levou a não reparar direito na arrumação da casa?

09. Como Dona Custódia reagiu diante do retorno inesperado do patrão?

10. De que forma a empregada desfez o constrangimento na hora do chá?

11. Para justificar o encontro promovido às amigas, Dona Custódia relatou duas ocorrências ruins em seu passado. Quais?

12. Atitude tomada por Dona Custódia para fugir das amigas.

13. Explique a frase "...aquela tinha sido a oportunidade de reaparecer para eles".

14. Diante da explicação da empregada, que decisão tomou o patrão?

15. O que aconteceu quando Dona Custódia descobriu que uma das amigas havia se afeiçoado ao patrão? 

16. Não admitindo a afeição de sua amiga com seu hóspede, relate a decisão tomada por Dona Custódia.

17. Desenvolva, com suas palavras, um resumo desse texto.

18. Faça uma pequena pesquisa acerca do escritor Fernando Sabino.

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